4 de dez. de 2023

[Conto] CYRO MARTINS – O Negro Jacinto




                        [ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]


CYRO MARTINS (1908 - 1995) enriqueceu sua prosa com a experiência que colheu na sua cidade natal, Quaraí, nas suas próprias vivências, desde muito cedo, antes de mudar-se para Porto Alegre. Esse conhecimento do homem do campo foi a base para a sua ficção. O escritor ainda pode contar com a sua vivência na área médica, em especial na psiquiatria e na psicanálise.

A soma desses dois fatores – esse conhecimento da vida campeira e essa experiência profissional com a psicanálise – facilitou-lhe a construção de personagens fortes e, por assim dizer, reais. Na sua ficção – romance e conto – temos essa constatação. E temos histórias contadas num texto enxuto, que não permite demasias de estilo.


O conto O Negro Jacinto, que segue, integra o livro de contos regionais Campo fora, estreia de Cyro Martins, em 1934, e que foi muito valorizado pelos críticos, pela abordagem social do escritor e pelo seu modo de narrar.  (In Martins, Cyro. Campo fora. 5ª ed. Porto Alegre: Editora Movimento, 1991, p. 61-62):


 [ESPAÇO DO CONTO]


O NEGRO JACINTO
  [ CYRO MARTINS]


Debaixo dum carretão velho de cabeçalho quebrado e rodado sem chapa, deitado, a cabeça descansando sobre as mãos em cruz, o Coleira revivia antigas lembranças. O olhar vesgo e gris, solto à toa no campo raso, era fugitivo, ambíguo, disperso como numa amarga meditação. Nunca andara assim, debalde, espichado no chão, vagabundo e sonolento. Nunca. Só agora que estava velho e caduco, que não prestava para mais nada, que vivia essa vida inútil de tédio e preguiça. Mas não gostava disso. Sempre preferiu a vida ágil e gaudéria que levava noutros tempos, quando era novo e tinha força. Todos o animavam então. E ele bem merecia, pois não havia campereada que não ajudasse.  Ia em qualquer volteada, corresse risco ou não, alegre, cabeça erguida, faro ativo, e o arco torcido para cima. Quantas vezes escapou por um triz de ficar enfiado nas guampas dos touros.

E agora tudo mudado. Decrépito, as juntas emperradas, de há muito sem aquela atitude arrogante de antigamente, judiado e debochado por todos. E que desconsolada sua melancolia de cachorro decadente, nas manhãs barulhentas de rodeio e sol, ao ver a cachorrada sair em grupo, embolada num novelo turbulento, pulando no estribo do patrão e ganindo excitada de alegria! Farejava o vento agreste, entesava as pernas magras, e arremetia leve como se mudasse  instantaneamente noutro, no que fora. E a poucos passos ficava exausto e vencido, parado, numa tremura. A custo sentava sobre as pernas traseiras, erguia bem alto a cabeça, e uivava longamente, angustiando com a sua lástima a ventura da manhã.

O galpão ficou só. Dia frio. E feias as campanhas, pardas de garoa. O choro do vento nos oitões e a zoada do arvoredo despilchado de inverno enchiam o vazio do sol e da vida. O Coleira se arrastou até a porta. Abriu os olhos cansados. Ninguém! Caminhou trôpego e ansioso para a beira do fogão, apressado por matar aquela saudade. Arrodeou os tições que ardiam quietos e se enroscou na cinza morna. Já lhe era quase estranho aquele calor. Também, há quanto tempo! Ninguém o queria mais ali, atulhando caminho, traste sem préstimo!

Lá fora caía neve. Mas na beira do fogão estava tão quente! Feliz, esquecido que tinha penado, foi adormecendo devagarinho. E sonhou. Foi um sonho cheio de aventuras e perigos do tempo desperdiçado de cachorro novo. Sonhou com as caçadas das noites de verão. Quanto bicho tirou da toca! E quantos outros correu campo fora até pegar! E logo o sonho mudou para um dia de solaço. Andava campereando com a peonada.

Numa trepada de coxilha, um lagarto verde e enorme, escarrapachado sobre a laje. Negaceou escondido entre os miolos, como pisando em espinhos, alevianado que andava.  Voou uma perdiz de dentro de uma moita, riscado linha direta no ar. Ele seguiu com raiva o voo trepidante que podia espantar a caça.  Mas logo o rufo silenciou. A perdiz se degolou na corda mais de cima do aramado. O gorgon ficou vibrando um assobio. O lagarto inchou de brabo. E ele pulou ágil na presa. Mas levou tamanho lepte nas costelas, que saiu quietinho, fino, para trás. Refeita a coragem, carregou com mais gana agora. A barriga lisa do lagarto amarelou para cima, e o novo guascaço doeu mais ainda. Encolheu-se e ganiu de dor.

Acordou. Uma gargalhada debochada e gaiata estrondou no galpão. Na frente dele, o negro Jacinto, beiçudo, olhos rasgados, chiripá de lona, com um relho trançado e grosso dependurado na mão monstruosa de tamanho, e a dentuça branqueando na bocarra escancarada.



*  *  *


13 de mar. de 2023

[Poesia] A CASA DE PEDRA – Pedro Luso de Carvalho

 

Renoir



A CASA DE PEDRA

            – Pedro Luso de Carvalho




Por quanto tempo fiquei ali,

feito estátua, em frente à casa,

entre prédios e palacetes ?


Volto depois de muitos anos

à antiga casa de pedra –

o reino perdido da infância.


Era grande a casa de pedra,

na minha infância tão distante –

palácio de tantos brinquedos.


Ficou pequena, a minha casa

de pedra! Onde a casa de sonhos?

Sumiram juntas, casa e infância?


Lufada de vento oportuna

(sopro de algum anjo perdido)

fez-me entrar na casa de pedra.


Posso, homem de tantos caminhos,

ser de novo aquele menino

dessa casa – reino perdido?


Falta-me o fôlego. No peito

garras ferem – emoção e dor.

Levou o sonho, ave de rapina.



__________//__________





13 de mai. de 2022

[Poesia] O GATO PRETO – Pedro Luso de Carvalho

 







O GATO PRETO

Pedro Luso de Carvalho





A noite parecia ser grande ameaça,

não era qualquer noite como outras,

as lâmpadas apagadas nos postes,

naquela noite de escuridão e medo.



Não vi o gato preto atravessar a rua,

o gato e a noite eram da mesma cor.

O gato, enigma e mistério da noite,

que com miados rasgou o silêncio.



Se na escuridão imperava o medo,

o que posso dizer do gato preto,

na repentina aparição na noite,

na rua deserta da cidade morta?



O medo tirava o ritmo do coração,

no escuro morada dos fantasmas,

fantasmas em danças macabras,

em alucinante dança jamais vista.



Depois, na manhã dourada de sol

na grama do cemitério acordei,

aí onde ronronava o gato preto

próximo a túmulos e ciprestes.





_____________//_____________






22 de dez. de 2021

[Poesia] DISTANCIAMENTO / Pedro Luso de Carvalho




 




DISTANCIAMENTO


- Pedro Luso de Carvalho



Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes,

dos bons e saudosos tempos,

sob o sol de todas as estações.


Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes,

dos folguedos todos da infância,

mundo à parte d’outros mundos.


Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes,

não é como outras que eu vivi,

no deslumbrar da juventude.


Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes

em que vivi bem mais à frente,

com meus êxitos a comemorar.


Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes,

esta tem um peso de chumbo,

peso que eu mal posso suportar.


Esta não é uma tarde qualquer,

não é como outras tantas tardes,

é uma tarde de distanciamento,

uma inútil tarde de fria solidão.



_______________//_______________



13 de out. de 2021

O NOVO CORONAVÍRUS - Pedro Luso de Carvalho

  



O NOVO CORONAVÍRUS


                 - por Pedro Luso de Carvalho




Do velho coronavírus não lembro,

mas se presume que ele existiu,

certamente sem a fúria do novo

que contamina a muitos e mata.


O que sei é que o vírus veio em bando,

está o vírus aqui, ali, acolá,

invisível em todos os lugares,

na mão estendida, no abraço, no beijo.


Mas agora se tem mais fome e luto.

Com tanta morte não se tem descanso,

em especial com os tantos pobres,

pois riscos para os ricos são menores.


Depois que esse vírus for derrotado

ficarão ecos das agônicas dores,

do denodado trabalho dos médicos,

e enfermeiras – ciência e doação.




              *   *   *



1 de out. de 2021

(Poesia) COFRES E LADRÕES / Pedro Luso de Carvalho

 

Congresso Nacional / Brasília - DF




COFRES E LADRÕES

             – Pedro Luso de Carvalho





Feche bem essa porta, meu filho,

há muitos ladrões lá fora.

Feche bem essa porta, meu filho,

se entrarem nada sobrará

do que temos.

(Ratos vêm roer nossos pés.)



Sabe onde se escondem os ladrões

dos nossos cofres, meu filho?

Escondem-se em palácios forrados,

tapetes dourados tecidos em ouro

e prata, embriagados pelo poder.



Mas logo tudo passará, meu filho,

essas bocas ilustres dos ladrões

de fala fácil, enganosa fala,

não mais terão o que dizer.



Ouve o vento bater na janela,

meu filho, ouve o suave vento

de harpa tangida, nosso alento,

único discurso para ouvirmos.





_________________//_________________






11 de set. de 2021

LAURO RODRIGUES – Dois poemas






[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]


LAURO RODRIGUES  (Lauro Pereira Rodrigues) nasceu no distrito de Santo Amaro do Sul, município de General Câmara, RS, em 1918 , e faleceu  em 17 de dezembro de 1978.

Lauro Rodrigues foi jornalista, radialista, poeta e político. Elegeu-se vereador pela cidade de Porto Alegre e deputado federal, por dois mandatos (1970 e 1978). Poeta foi membro da Estância da Poesia Crioula. Radialista apresentou em 1935 Campeiradas, na Rádio Sociedade Gaúcha, o primeiro programa de atrações regionalistas no Rio Grande do Sul.

Dando vasão ao sentimento que tinha pela poesia, Lauro Rodrigues escreveu: Invernada vazia, Ed. Coruja, 1944; Minuano, Ed. Livraria do Globo, 1944; A ronda dos sentimentos, Ed. Globo, 1944; Senzala Branca, Chirus, Ed. 3 Xirus, 1958; A canção das águas prisioneiras, Martins Livreiro, 1978.


 
Lauro Rodrigues escreveu, também: Aniversário da Revolução Farroupilha, Imprensa Nacional, 1972; Rio Grande do Sul Terra e Povo, A Evolução do Homem, Decadência da Dignidade.

Segue dois poemas de Lauro Rodrigues  (in Rodrigues, Lauro, A canção das águas prisioneiras. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1978, p. 11-89):



[ESPAÇO DA POESIA]



DOIS POEMAS

[ LAURO RODRIGUES ]



I


Domaram o curso das águas!
Prenderam o rio na barragem!
Surge uma nova paisagem
na praia desfigurada...

Como um gigante a amurada
desafia a natureza!

Adeus, antiga beleza
dos salseiros, das areias,
dos clarões de lua cheia
que, agora, morrem na teia
dessa monstruosa cadeia
de ferro e cimento bruto.




II



Quero continuar andejo,
sem passado  e sem futuro!
Das minhas penas me curo
com outras penas, também...
Sempre medi a desgraça
que impera no campo alheio!
Bicheira é flor de rodeio,
pois Deus não poupa ninguém...

Quando chegar o final
hei de ficar por aí,
guardando um pouco de ti
como lembrança de velho!
A estrada é a escola da Vida
cujas lições sempre guardo,
pois a experiência é um fardo
que se reparte em conselho...




*  *  *


12 de jul. de 2021

[Crônica] ANTÔNIO MARIA – Ninguém me ama I

  
-  PEDRO LUSO DE CARVALHO

ANTÔNIO MARIA (Antônio Maria Araújo de Morais) nasceu em Recife a 17 de março de 1921. Maria, como era tratado pelos íntimos, escrevia crônicas diárias no O Jornal – onde permaneceu por 15 anos –, no O Globo, em 1959 – aí ficou por pouco tempo –, e na Última Hora.

Além do excepcional cronista Antônio Maria foi compositor, e teve como parceiros nomes famosos como Fernando Lobo, Luiz Bonfá, Vinícius de Moraes, entre outros – escreveu a letra de Manhã de Carnaval, uma das músicas mais executadas no exterior, e que seria um dos temas musicais do filme franco-ítalo-brasileiro, Orfeu Negro, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro.

Dentre as 62 composições de Antônio Maria, merecem destaque, também: Menino grande. Ninguém me ama, Valsa de uma cidade, Canção da volta, O amor e a rosa, As suas mãos, Se eu morresse amanhã.  Sobre a composição Ninguém me ama houve injusta acusação de plágio por Fernando Lobo.

Na crônica que segue, intitulada Ninguém me ama I, na qual Antônio Maria aborda parte do problema criado por Fernando Lobo, pai de Edu Lobo (In Maria, Antônio. Crônicas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 24-25):


         [ESPAÇO DA CRÔNICA]


           NINGUÉM ME AMA I
                    [ ANTÔNIO MARIA ]


Sairá amanhã a Manchete que revela os verdadeiros autores do Ninguém me ama. Estou lendo as provas. Quanto ao depoimento do senhor Haroldo Barbosa, não direi nada ainda, pois espero seu desmentido e, ao menos, seu processo judicial contra a revista. O senhor Fernando Lobo jamais me decepcionou. Que feliz seria eu se todos os seus atos ignominiosos (contra mim) se restringisse a essas questões musicais. Mas o dito trabalha à base de ação ampla. Devo explicar, todavia, que os versos onde as palavras “de fracasso em fracasso” não são de Fernando. E é fácil de provar, porque a palavra “fracasso” está escrita corretamente, isto é com dois “ss”. Caso fosse verdade, uma colaboração sua, eu juro que respeitaria as cedilhas (çç) habituais.

Que espíritos pouco ambiciosos! Enquanto estão querendo ser Antônio Maria e ter feito o Ninguém me ama, eu gostaria de ter sido Exupéry e ter escrito o Pitit Pince. E no mais diz o nosso bom Antoine Exupéry. “As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam nunca: ‘Qual é o som da sua voz?’ Mas perguntam: ‘Qual é sua idade? Quantos irmãos tem ele? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?’ Somente então é que elas julgam conhecê-lo”.
                                                                                              
                                                                                                                            17/4/1957



    *  *  *


20 de mai. de 2021

HEMINGWAY – Sua fala sobre Stein, Pound e Perkins




[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]


HEMINGWAY (Ernest Miller Hemingway) nasceu em Oak Park, Illinois, EUA, em 21 de Julho 1899, e morreu em Ketchum, Idaho, aos 2 de Julho 1961. Foi casado quatro vezes, e teve muitos casos amorosos. Era um dos seis filhos do médico Clarence Edmonds Hemingway (membro fervoroso da Primeira Igreja Congregacional) e de Grace Hall (cantora do coro da igreja). Ernest Hemingway pôs termo à sua vida da mesma forma que o fizera Clarence, seu pai: suicídio.

Em entrevista que Hemingway concedeu a The Paris Review, o entrevistador quis saber qual a influência de algumas outras pessoas, contemporâneas dele, tiveram influência em sua obra; quis saber qual foi a influência de Gertrude Stein – se é que houve – a resposta foi negativa, acrescentando que “Miss Stein escreveu com certa prolixidade e considerável inexatidão a respeito de sua influencia sobre minha obra (...) Ela escrevia muito bem de outras maneiras”.   Sobre Ezra Pound, diz: “Quanto a Ezra, era extremamente inteligente quanto aos assuntos que realmente sabia”. E conclui: “Aqui, é mais simples e melhor agradecer a Gertrude Stein por tudo que aprendi com ela, reafirmar minha lealdade a Ezra Pound como um grande poeta e um amigo leal, e dizer que me interessava tanto por Max Perkins, que jamais consegui aceitar o fato de que ele morreu. Ele nunca me pediu que modificasse coisa alguma por mim escrita, exceto eliminar certas palavras que não eram então publicáveis, Os travessões eram mantidos, e quem quer que conhecesse tais palavras saberia quais eram elas. Para mim não era um redator-chefe. Era um amigo sensato e um companheiro maravilhoso.”




REFERÊNCIA:
COWLEY, Malcolm. Escritores em ação. Tradução de Brenno Silveira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 249-250.


*  *  *

11 de ago. de 2013

BAUDELAIRE / Há Algo de Dante





        Há algo de Dante, de fato, no autor das Flores do Mal, mas é um Dante de uma época decaída, é um Dante ateu e moderno, um Dante vindo depois de Voltaire, num tempo que não terá São Tomás. O poetas dessas flores, que ulceram o seio em que repousam, e não é culpa dele, pertence a uma época conturbada, céptica, zombeteira, nervosa que se retorce nas ridículas esperanças das transformações e das mentepsicoses; não tem a fé do poeta católico que lhe dava a calma augusta da segurança em todas as dores da vida.


                                                                                (Théophile Gautier)


In Théophile Gautier,  Baudelarie, trad. de Mário Laranjeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p. 111.


                                                                   *  *  * 


29 de jul. de 2013

[Conto] BARBOSA LESSA – Gadinho de osso



[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ]


BARBOSA LESSA – Luiz Carlos Barbosa Lessa – nasce a 13 de dezembro de 1929, em Piratini, RS. Na sua adolescência, muda-se para Porto Alegre, para cursar o 2º Grau. Mais tarde conhece Paixão Cortes, e o ajuda na ronda à Chama Crioula, e depois passa a colher assinaturas de jovens para fundar um centro tradicionalista. Dessa iniciativa, nasce o primeiro CTG (Centro de Tradições Gaúchas).

Muitos anos depois, Barbosa Lessa é convidado pelo governador Amaral de Souza para integrar a Secretaria da Cultura. Então passa a estudar a criação de centro de saber acadêmico. E em março de 1983, pode inaugurar a Casa da Cultura, que mais tarde teria por patrono poeta gaúcho Mario Quintana.

Barbosa Lessa dedica-se à pesquisa da História do Sul. Depois, passa esses conhecimentos para a ficção (romance e conto), para a crônica, para a poesia e para o ensaio. Escreve, entre outras obras: Rodeio dos ventos, Histórias para sorrir e Os guaxos, com o qual recebe o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1959.

O escritor volta deixar a capital, desta vez para residir, com a esposa Nilza, na reserva Água Grande, no município de Camaquã, não muito distante de Porto Alegre, onde falece, a 11 de março de 2002, aos 73 anos  de idade.
 

Segue Gadinho de osso, conto de Barbosa Lessa (in, Lessa, Barbosa. Histórias para sorrir. Porto Alegre: Alcance, 1999, p. 41-42):



[ESPAÇO DO CONTO]


GADINHO DE OSSO
[ BARBOSA LESSA ]


Aquilo, sim, que era estância! Não havia, em toda a volta, outra tão linda. Campo de pura Flexilha. Aramado caprichado, com mourões de pauzinhos e os fios feitos de barbante. E tinha até banheiro para se banhar o gado, embora fosse tão só um buraco que a gente enchia de água para ali atirar o boi e tirar-lhe o carrapato. Eu brincava horas a fio. Só o que tinha que evitar, com muito jeito, é que a porca ali chegasse, com a fileira de leitão; se visse vinha escangalhando tudo, botava o aramado abaixo, só eu sei a trabalheira em refazer tudo, depois.

Quando pra os grandes era dia de carneada, pra mim e o meu primo era dia de tropeada. Daquele ossinho comprido, que parece ter as patas e duas pontas de aspas, a gente tirava as vacas. Chicossuelo era touro. Das patas, vinha a cavalhada. E, do espinhaço, as ovelhas.

A lida do trivial era repontar boiada duma invernada pra outra. Em dia de banhação a caneca do barril não tinha folga: nem bem se botava a água, já a terra seca chupava, dê-lhe água novamente. Mas o brabo mesmo era o solaço de verão, nos dias de marcação, com a gente atirando laço, correndo de lá pra cá, aplastado de suor. Mas aí chegava a Leila – a priminha sempre amiga – servindo mate pra mim...

Recordo que um dia peleei feio com um domador novo nas casas, o Cesário, porque me roubou o melhor touro e com ele foi jogar jogo-de-osso no galpão. Parei patrulha! Berrei até que o Cesário teve que me devolver. Mas, naquele dia, morreu a barrosa velha no piquete das tambeiras, foi ele quem foi courear, na hora lembrou de mim, voltou com oito cavalos de presente pra minha estância, fiz as pazes, se abracemo.

Naquela estância – única estância que tive, mas que acompanha minha vida – passei as horas mais lindas do meu tempo de piá.

E hoje, quando me vejo embretado em cidade grande e tão longe da querência, há ocasiões em que acordo ouvindo os gritos campeiros de outrora. É festa de marcação!

– Abre a porteira, Cesário, que venho trazendo os boizitos da Invernada da Saudade!

– Me ceva um mate, priminha, que a sede está me tonteando!

– E aviva o fogo! E esquenta a marca! Já está vermelha? Então...

... Tchhhhhh!

A marca do Rio Grande marcou a fogo minha tropa da saudade.




*  *  *



Postagem em destaque

[ PEDRO LUSO DE CARVALHO ] HEMINGWAY (Ernest Miller Hemingway) nasceu em Oak Park, Illinois, EUA, em 21 de Julho 1899,...